Antes de começar o texto, vou deixar aqui o aviso para as pessoas que talvez tenham problema com isso: esse post menciona violência sexual. Por isso, se isso te faz sentir mal, não estrague o seu dia com esse texto. Agradeço por ter aberto o post.
Em um outro post de dois anos atrás, eu escrevi sobre algumas lendas com relação a produção de Kare Kano. A maior parte delas é com relação ao anime. Uma delas é sobre a relação entre o diretor do anime Hideaki Anno e a autora do mangá Masami Tsuda, que seria supostamente a razão da saída de Anno da produção do anime.
Como expliquei no texto anterior, isso não é verdade. Primeiro pelas declarações do próprio Anno. Segundo, porque a visão que o Anno tinha da obra quase certamente influenciou a sequência do mangá. O aspecto psicológico dos personagens é bem mais explorado na segunda metade da obra, com algumas coisas bastante marcantes.
Kare Kano tem um clima jovial pela maior parte da obra. Ela é extremamente bem escrita e desenvolvida, mas apesar de tantos personagens e do frescor que a obra tem, ela faz a representação de alguns personagens com defeitos muito claros. Claros mas não unidimensionais. Um dos grandes méritos da obra é nunca esquecer desses defeitos. Eles podem até em alguns momentos serem suplantados por outras emoções e situações, mas eles sempre estão ali a espreita dentro de cada um deles.
A protagonista da obra, Yukino Miyazawa faz tudo pelo elogio. Isso inclui até mesmo forjar a sua própria personalidade, sacrificar o corpo e a mente em troca de ser agraciada. Apesar disso, ela não consegue manter essa máscara o tempo todo - a sua família talvez sejam os únicos que de fato conhecem a Miyazawa de verdade.
O outro protagonista, Arima Soichiro, é um rapaz que tem grandes traumas dentro de si. Por fora, porém, ele se moldou a ser tudo o que alguém poderia querer. Em grande parte, o motivo para isso é que ele quer que seus pais adotivos, que na verdade são seus tios, não se decepcionem com ele.
Dois dos temas centrais de Kare Kano são contenção, percepção e realidade. Esse também é o tema central do principal capítulo que vamos discutir mais adiante.
A contenção dos defeitos de ambos, aparece frequentemente quando os dois estão juntos. Aparentemente, tanto Arima quanto Yukino são capazes de na maior parte do tempo, neutralizar os defeitos um do outro. Isso não acontece o tempo todo, mas por grande parte da obra os personagens estão no estágio de "contenção", sendo capazes de fazer isso um pelo outro. Arima consegue amar de verdade a Miyazawa, deixando o seu passado triste de lado e Miyazawa consegue deixar sua ânsia pelo elogio dormente.
A "percepção" é talvez a mais interessante, porque na maior parte do tempo, a percepção dos personagens não corresponde a realidade. Por exemplo, Arima se molda por completo para que ele não decepcione as pessoas ao redor dele, principalmente seus tios que o criaram após os abusos que ele sofreu na infância, além de outras pessoas que poderiam o considerar menos por causa do seu passado.
Acontece, que em nenhum momento esse tipo de cobrança existe sobre Arima. Nem por parte dos seus tios, nem por parte de seus amigos e muito menos por parte da Miyazawa. Quase o tempo todo ela parece bem disposta a abraçar os defeitos dele. A percepção dele é de que todos estão cobrando ele para que ele seja perfeito, mas na prática todos estão mais do que dispostos a tolerar os seus defeitos.
Miyazawa, na prática, é a mesma coisa. Embora os motivos dela sejam um pouco mais vaidosos e direcionados a satisfação pessoal, na sua família não há nenhum tipo de exigência para que ela seja a melhor aluna, ou melhor em qualquer coisa que seja. Na verdade, em algum momento os pais da Miyazawa até falam que ela é esperta demais para o tipo de família que eles tem.
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Tudo isso nos leva ao décimo quinto volume do mangá.
Esse capítulo ainda é relativamente distante da conclusão da história, mas uma cena dele ficou bem marcada nos leitores.
Nesse ponto da história a relação entre Arima e Miyazawa não vai bem. Arima tem lembrado dos abusos que sofreu na infância com constância, e grande parte das cenas do Arima são sobre o medo que ele tem de mostrar o seu verdadeiro eu. Boa parte das cenas durante esse período são sobre o Arima revivendo aqueles dias, e como isso tem afetado ele ate os dias de hoje - e isso só piora quando as memórias começam a se tornar mais vívidas - e principalmente após a reaparição de pessoas diretametne envolvidas nos seus traumas, como sua mãe abusiva.
Acontece, porém, que a Miyazawa como namorada entendia que esse momento era o qual ela deveria estar mais próxima dele. Já Soichiro tenta a todo custo afastá-la dele. Arima, com medo do seu "eu-verdadeiro" machucar Miyazawa, passa a atuar para que a relação deles termine. Esse é um período bem angustiante do mangá, porque acho que ela é muito bem escrita - você realmente sente que a relação vai saindo dos trilhos aos poucos. Aos poucos, eles parecem implodir o o que sentem um pelo outro, principalmente pelo lado do Soichiro.
Esse conflito tem seu ápice, no volume 15 - mais especificamente nos capítulos 69, 70 e 71. Os títulos são bem apropriados: "Soneto dele", "Soneto do Outro Ele" e "Soneto dela", respectivamente.
Nestes capítulos, Miyazawa tenta se reconectar com Arima a todo custo, e ele segue tentando afastá-la.
É sempre interessante comparar essa parte do mangá com o começo, porque é bem visível que a maneira como os personagens atuam e a forma como a história é contada é toda bem soturna. As partes de humor quase que desaparecem. A Masami Tsuda tem um traço bem próprio, e embora ele não seja do agrado de todos, ela sabe bem variar o estilo de acordo com as situações. É bem notório como a arte dessa parte do mangá é consideravelmente diferente das partes mais cômicas.
Ela também faz um uso muito bom de sutilezas nos personagens em si. Uma coisa bem sutil durante esse arco é, por exemplo, como o cabelo da Miyazawa, sempre vaidosa e atrás de elogios, é deixado um pouco mais longo. Eu sempre entendi isso como uma mensagem de que naquele momento até a vaidade dela era secundário.
Com isso, chegamos ao capítulo 72, que é o tal capítulo polêmico desse arco. Com o título de "Soneto dele e dela".
Aqui, a Miyazawa e Arima se encontram na biblioteca da escola, e Miyazawa despeja tudo nele: O quanto ela amava ele, o quanto ela estava insatisfeita por Arima agora viver no seu mundinho e que estava disposta a aceitar ele como ele fosse. Ela percebe então que ela confiava muito mais no Arima do que ele confiava nela.
Ela então diz que não podia dizer com sinceridade que amava a pessoa que agora estava diante dela.
Arima, por sua vez, nota que ele não tem mentido para Miyazawa, mas sim para si mesmo. Apesar de ter notado isso, ele surta e pede para que Miyazawa pare de sonhar e sair. Ele pede que ela corra, que saia por ai dizendo que ele é o culpado.
Miyazawa abraça Arima após ele despejar tudo o que queria sobre ela. Ele a beija, e a deita no chão da biblioteca. Há um sutil quadro do Arima beijando o pescoço da Miyazawa, enquanto a Miyazawa diz "espere".
Assim como na primeira relação sexual deles muito capítulos atrás, o que se segue é representado de forma bem lúdica. Miyazawa parece estar em algum lugar do subconsciente do Arima, e nota que ele é todo espinhoso, cheio de raízes distorcidas, que parecem proteger um Arima criança. Esse Arima é o mesmo que vemos durante todos os flashbacks desse arco: frágil, assustado e traumatizado. Aqui temos o flashback que tem assombrado Arima durante quase todo esse arco - os abusos e o abandono de sua mãe. A mesma mãe que tentou novamente entrar na sua vida tanto tempo depois.
Quando voltamos ao mundo real, o quadro que temos é o da Miyazawa deitada no chão, coberta por um casaco do uniforme escolar, olhando para o teto, com a lua já visível do lado de fora da janela. Essa cena tem uma continuidade um pouquinho estranha, porque após o ocorrido a Miyazawa abraça o casaco enquanto seus olhos se enchem de lágrimas, o que sempre me fez entender que ele fosse do Arima, mas a Miyazawa em si está sem o casaco dela (ela estava com ele no começo da cena).
A cena como um todo, implica duas situações bem contraditórias, com duas interpretações de um mesmo acontecimento. O mais claro é que eles de fato tiveram uma relação sexual naquele momento. O que é menos claro é o nível de consentimento, e principalmente como cada um viu aquela situação.
Os quadros iniciais da cena parecem implicar que houve uma certa resistência da Miyazawa. O Arima parecia bem consciente de que estava fazendo algo errado com ela. Isso fica bem mais claro ao final do capítulo, quando ele decide se machucar sozinho usando um estilete para machucar a própria mão.
Por esse lado, a situação parece até um tanto clara, mas a parte mais intrigante é de fato a reação da Miyazawa. A situação que se apresenta é a seguinte: Arima acredita que cedeu a sua perversidade, ao seu "eu-verdadeiro" que ele tanto temia, e se forçou na Miyazawa. Já a própria Yukino Miyazawa, apesar de tudo, não parece achar que foi violada.
Isso fica mais explicito no Capítulo 73 - "O Fim da Noite". Nesse capítulo, a Miyazawa vê os ferimentos que o Arima fez em sua própria mão. Ele diz a ela que ontem ela conheceu o seu lado perverso e ruim, e ela reage da seguinte maneira:
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| "O que você acha que aconteceu ontem? Eu não disse 'não' uma vez sequer!" |
Todo essa situação sempre me intrigou bastante. Arima parece bem consciente do que ele tentou fazer com a Miyazawa, enquanto ela diz que em nenhum momento pediu que ele parasse. Isso contradiz um pouco o que vemos na cena - ela apresenta uma resistência inicial, mas segundo ela mesma, em algum momento ela deixou que aquilo acontecesse por vontade própria.
Isso me leva a crer que a Miyazawa acreditava que se tivesse dito "não", o lado bom do Arima teria vencido e não teria feito aquilo com ela. Como ela não disse, ela entende que aquilo não foi um ato de perversidade dele, mas sim só uma relação consensual entre os dois, mesmo que ele tenha certeza de que não estava na melhor das intenções.
Acho que essa é uma representação bem extrema do tipo de confiança que a Miyazawa tinha no Arima. Sendo bem honesto, eu nunca cheguei a uma conclusão boa do que pensar sobre essa cena. Acho que por um lado, a proeza narrativa é justamente mostrar essa ambiguidade. Nunca saberemos, de fato, o que teria acontecido se a Miyazawa o tivesse pedido para parar. A Miyazawa demonstra ter certeza que sim. Para nós leitores, cabe a interpretação de cada um.
O capítulo seguinte (73) é o capítulo em que os dois de fato chegam a um entendimento. As palavras de Miyazawa parecem dissipar algo que envenenava a alma de Arima, que acreditava piamente que no fundo, ele não podia escapar de ser uma má pessoa devido aos seus traumas. Ele parece enfim chegar a conclusão de que ele tinha pessoas que o amavam agora, e ele não precisava das pessoas que lhe fizeram mal no passado.
Esse arco do mangá é todo muito interessante, com situações moralmente bem ambíguas. Esse capítulo, claro, é o ápice disso, mas não é o único. Temos por exemplo a tentativa de conciliação da mãe abusadora do Arima, que tenta retornar a sua vida, se dizendo "reformada" e tentando pedir desculpas pelo passado. Há muita coisa para se pensar sobre esse arco, que do ponto de vista de narrativa é um dos mais profundos e interessantes do mangá.
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Obrigado por ler.




